Outro Lado da Lua

Luiz A. G. Cancello

Musa dos poetas e namorados, de astrônomos e astronautas, astrólogos e ufologistas. Na antiga língua indo-ariana, raiz de inúmeros idiomas ocidentais, chamava-se simplesmente me. Esse pequeno fonema originou diversas palavras que usamos a cada dia: mês, mensuração, menstruação, medir. Pelo caminho de volta, nos meandros da etimologia, a aridez da medida reencontra a suavidade da lua.

A origem das palavras refaz o tempo em que a medida das dimensões do espaço confundiam-se com o próprio corpo do homem: as medidas chamavam-se polegadas, palmos, braças, pés. As distâncias maiores eram concebidas com base no corpo andando: quantos passos um ponto distanciava-se da origem, quantas luas se demorava para ir de um lugar ao outro.
Mas um dia alguma coisa mudou. Para que as pessoas se entendessem – para que trocassem quantidades equivalentes de mercadoria, diriam os economistas – as polegadas precisavam ser todas iguais. Já não importava mais se alguém tinha o “dedão” mais comprido ou mais curto; passou a haver um “dedão coletivo”, sobreposto a todos os outros. Nascia uma outra polegada, mudando todo o significado do que se entendia por medir. Nesse mesmo dia, paradoxalmente, a lua ficou um pouco mais distante.
O comprimento linear foi-se tornando o padrão de medida e exatidão. Mesmo o tempo curvou-se ante o espaço – afinal, até há pouco líamos as horas considerando a distância percorrida pelos ponteiros do relógio. Os exemplos podem se multiplicar: a velocidade do carro expressa no comprimento do arco de círculo dado pelo ponteiro do velocímetro, a temperatura pelo tamanho da coluna de mercúrio do termômetro.
A padronização do metro, hoje definido como “Unidade fundamental de medida de comprimento no Sistema Internacional, igual a 1.650.763,73 comprimentos de onda, no vácuo, de uma raia vermelha do criptônio 86, correspondente à transição entre os estados dubleto p 10 e quinteto d 5” – podem conferir no Aurélio – deixa-me com saudades do “METRO: (…) Unidade de medida de comprimento, que serve de base a todo o systema de pesos e medidas chamado métrico: o metro é igual à décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre, que um dia li no Diccionário Prático Illustrado, dir. de Jayme de Séguier, Porto, 1928 (!). Nunca entendi como conseguiram dividir o meridiano com tal precisão, mas era uma coisa mais compreensível que o dubleto p 10 ou o quinteto d 5. Lembro-me também, vagamente, de ter aprendido que havia, em Paris, no Musée des Arts et de Métiers, um pedaço de platina iridiada, que seria o metro dos metros, o padrão por excelência. Quando eu soube disso não tinha a menor ideia do que fosse “platina iridiada”, mas de qualquer modo sabia que era um material sólido, concreto, visível, localizado.
Todas essas definições, em sua ânsia de precisão, foram deixando o conceito de medida a anos-luz da pele de cada indivíduo. A lua, se não fosse resgatada continuamente pelos poetas e namorados (além da NASA, pode-se dizer), estaria hoje praticamente esquecida.
E de novo as coisas mudaram. A introdução do mostrador digital acentuou radicalmente o quadro anterior, mas fez seu trabalho em silêncio. Na passagem da leitura do comprimento para a constatação imediata do número modifica-se algo mais que o layout da medida. Perdida a visibilidade da escala, o zero fica escondido, a direção (finita ou infinita) apenas subentendida. A margem de erro torna-se um simples dado no manual do usuário, a continuidade se retira; cada ponto (exato) torna-se uma verdade absoluta. Para a visão ingênua e desarmada do usuário o conjunto desses pontos já não forma um continuum. Uma parte do universo fragmenta-se sob os olhos de todos – literalmente. A bomba atômica fez, ao menos, um enorme estardalhaço. E não mexeu com a lua.

Tudo isto aprendi nos livros e na vida. Mas a verdadeira mudança na história da medida assaltou-me numa noite de inverno. Creio que foi em 1986. Um fato bastante conhecido de pais, mães e avós escancarou o novo mundo em plena sala da minha casa.
Meu filho estava menos ativo que de costume. Quando fui dar-lhe um beijo de boa-noite notei sua temperatura elevada. Era uma noite fria e chuvosa, ironicamente sem lua. Telefonei à médica e pedi que viesse cuidar do menino.
A doutora chegou logo, afável, beijos; é a “tia”, a moderna pseudo-irmã do pai ou da mãe, como bem pode ser: limpa, cheirosa, bem vestida, classe média.
Ao examinar o garoto não colocou a mão em sua testa, como faria a avó, ali presente. Ela é a doutora dos anos noventa. Tirou do bolso um estojo de design avançado. Dentro daquela escultura portátil havia um termômetro japonês (de última geração, suponho). Colocou-o na axila do seu pequeno cliente. Pelo menos esta é constante: a axila, o sovaco, aquele corpo dos pés e das polegadas, com sua permanência biológica dando o contraponto às mudanças da tecnologia.
Depois que o aparelho foi colocado no lugar adequado do corpo da criança, eu esperava, ingenuamente, que a doutora consultasse o seu relógio (também japonês). Para meu espanto, isso não aconteceu. Por via das dúvidas, comecei a marcar o tempo, discretamente. Seria ela uma das médicas adepta de esperar apenas dois minutos, ou teria adotado a escola das que esperam três? Mas que ingenuidade! Depois de algum tempo, a maravilha tecnológica agasalhada sob o braço do menino emitiu um “bip-bip”, como um Sputnik em órbita axilar, indicando a estabilização da medida. Até o satélite de referência é outro, e mesmo esse já está meio desatualizado.
O fantástico termômetro acusava a exatíssima temperatura da criança, oferecendo-a aos olhos dos humanos através de um mostrador de cristal líquido. Lá estava: 38,70C. Nada de coluna de mercúrio, do já antigo modo de descobri-la girando e girando o instrumento contra a luz. Acabou-se a dúvida: 37,8 ou 37,9?, coisa que sempre acontecia quando a extremidade da faixa prateada ficava situada no misterioso ponto entre os dois tracinhos.
No intervalo de tempo em que essas complexidades eletrônicas aconteciam – e eu, atônito, nem percebi se em dois ou em três minutos – a médica conversou sobre amenidades com minha mulher, que certamente, em sua preocupação, pouco atentou aos assuntos levantados: o custo de vida, a decoração da sala, os programas de fim-de-semana. A avó olhava com ar severo para a suposta displicência da doutora, afinal tão jovem. A conversa, rápida e fragmentada, substituía os olhares ansiosos para a antiga coluna de mercúrio, a atenção concentrada nas duas ou três voltas do ponteiro dos segundos, os gestos nervosos da mão na testa da criança.
Alertada pelo sinal, a médica leu o número indicado e guardou seu termômetro japonês. Procurei observá-lo detalhadamente durante o percurso entre o sovaco, a leitura e o estojo. Pouco mudou na antiga forma. Uma de suas extremidades alargou-se para receber o mostrador de cristal líquido, a indicar (precisamente) a temperatura. A cor foi alterada; ele é quase todo de plástico bege. Não dá mais aquele friozinho debaixo do braço; pode-se medir a temperatura da criança no inverno sem protestos.
Além desses aspectos externos, outras mudanças bem mais importantes e sutis aconteceram no instrumento. Se antigamente uma pessoa com nível de instrução secundário podia perfeitamente entender os princípios básicos que regiam o funcionamento do aparelho, hoje eles são privilégio de alguns poucos entendidos em eletrônica digital. Foi-se o tempo em que o simples calor do corpo provocava a dilatação do mercúrio, sumiu o relógio que rodava à base de molas e engrenagens. A lógica da física elementar fugiu do médico, distanciaram-se dele os objetos, a criança ficou um pouco mais longe, distanciamo-nos todos do homem, medida de todas as coisas.

Totalmente imune aos escombros da antiga ordem, a doutora escreveu a receita, beijou a criança e as duas mulheres presentes, apertou minha mão e foi-se embora. Já menos preocupado com o garoto, fui à farmácia comprar o remédio pensando na mudança dos tempos. Não me saía da cabeça a fascinação do meu filho pelo termômetro: ao ouvir o “bip-bip”, o menino olhou, curioso, os olhos brilhando. A avó concluiu de imediato: “Quem olha assim não pode estar muito doente.” Dito e feito. Quando acordei, no dia seguinte, ele já estava sem febre. Encontrei-o na sala jogando videogame.
A invasão da minha casa pela informática havia sido impressionante. Achei que valeria a pena registrar aquela visita médica e ordenar as ideias. Ainda faltava alguma coisa para ser entendida. Minha mulher já preparava o desjejum no micro-ondas, a manhã estava bonita, pensei até em ir à praia, mas preferi sentar-me em frente ao computador (um XT) e digitar estas notas. Quando acabei de escrever o sol já andava pelo meio do céu.

A lua brilhava no outro lado do mundo.

há uma versão anterior desta crônica publicada no jornal “A Tribuna”, em 1993.